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Treloso, gosto e obra

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Quando eu me mudei para Recife, uma das coisas mais estranhas que percebi era o afeto e a quase idolatria do povo recifense por um produto local que eu achava pouco saboroso. Na verdade achava que tinha gosto de terra. Seria um efeito do famoso e grandioso bairrismo recifense? Meu paladar sertanejo era pouco refinado (ou muito) para conseguir apreciar tal lanche? Passei um bom tempo olhando de lado para o biscoito de maior audiência da capital pernambucana, o Biscoito Treloso.
Menino treloso, quer comer biscoito...
Contextualizando o momento que tive contato com a bolacha recheada típica da capital, me mudei fisicamente para Recife (espiritualmente ainda moro em Salgueiro) em 2001. Isso é importante para aqueles que conseguem ter lembranças gustativas de forma parecida com a minha. Lembro da época, lembro do gosto. Domingo de manhã dos anos 90, por exemplo, tem gosto de feijão de arranca com arroz, farofa e carne assada com música de Chico Buarque ou Roberto Carlos, por exemplo. E o início dos anos 2000 tem gosto de terra quando me lembro do biscoito treloso. Aquela terra de areia de cimento, cheia de pedrinhas e pozinhos de rocha pulverizada pelo tempo.

Eu sou meio sem noção e passei um bom tempo para aprender que não devemos mexer com as coisas canônicas do Recife, ao menos enquanto você não conhece bem o grupo em que está inserido, algumas coisas não devem ser ditas. Falar isso que comentei no paragrafo anterior era uma delas. Não entendia o motivo de algumas pessoas olharem torto para mim por um comentário bobo sobre um biscoito (se fosse ao menos daquele caldo branco que o povo daqui chama mungunzá, eu até entendia). "Prefiro ficar com fome a comer isso", era outra frase não muito aceita. Era minha forma de protesto.
Patrimônio semi-material de Recife
Os anos passaram, meus conceitos e modo de ver o mundo mudaram. Aprendi a não destratar o Biscoito Treloso na frente de estranho ou comentar que o Recife Antigo tinha um cheiro esquisito. Minha convivência com o povo da Veneza brasileira melhorou muito e nunca mais senti como se ódio emanasse em minha direção. E aí chegou um dia que um amigo meu me ofereceu um biscoito treloso e tal. Não era aquele tradicional de chocolate, era um de brigadeiro que eu nunca tinha visto. Eu arrisquei. Sei lá. Me senti como alguém que dá um "pico" mesmo não tendo gostado da "bola". E não é que tava bom! Até pedi mais.
Terra...
Depois, por interesse próprio, procurei o tradicional de chocolate e me surpreendi! Tinha apurado o gosto e em nada parecia com aquele torrãozinho de terra que havia no passado. Hoje em dia não tenho mais nenhuma problema com Treloso e até indico, claro que sempre lembrando que tinha sabor de terra.

Algumas vezes as pessoas ainda estranham quando digo que o Recife Antigo tem um cheiro ruim, principalmente quando chove.

Rodolfo Nícolas gosta de bolacha 7 capa.

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